A vacina Oxford/AstraZeneca é fundamental na estratégia de vacinação no Brasil. O imunizante corresponde a mais da metade de todas as vacinas entregues ao Plano Nacional de Imunização (PNI). Por ser uma vacina com intervalo de 3 meses entre primeira e segunda dose - e como o país tem contratos que garantiriam pelo menos 220,4 milhões de doses desse imunizante (Fiocruz e Covax Facility) até o fim de 2021, priorizou-se aplicar o máximo possível de primeiras doses, contando com segundas doses que poderiam ser utilizadas de lotes futuros que chegariam. Essa abordagem funcionou até aqui, porém há um desafio importante pela frente:
Hoje há défict de 21,3 milhões de doses de vacina que não houve distribuição de D2 correspondente. Por mês, esse é o cenário atual:
A demanda por segundas doses deve acelerar significativamente a partir de Julho. Portanto, temos uma escolha complexa pela frente: ou desacelerar o ritmo atual de vacinação para guardar segundas doses (em momento em que há grande expectativa de aceleração); ou aplicar o máximo possível como primeira dose, propositalmente deixando atrasar o prazo de segunda doses; ou experimentar um "mix" de vacinas. Discorro sobre esses cenários:
Para que seja possível garantir a demanda de D2 para Julho, será necessário designar 12 milhões de doses como D2 entre Junho e Julho. O cenário mais otimista prevê 28,5 milhões de doses garantidas nesse período (18,5 milhões em produção agora + 6 milhões potenciais com IFA que chegou 12/06 + 4 milhões do Consórcio Covax).
Portanto 12 das 28,5 milhões (42%) teriam de ser designadas como segunda dose, e 16,5 milhões como primeiras doses.
É importante notar entretanto que tal solução só adiaria o problema, uma vez que quem tomará primeira dose entre Junho e Julho precisará da segunda entre Setembro e Outubro, período em que há um hiato entre o contrato atual e a produção de vacina nacional.
Há um contrato de 50 milhões de doses em negociação para esse período, mas ainda não foi confirmado. Mesmo após essa confirmação, ainda o calendário pode não combinar com quando as doses devem ser entregues. Frente a essa incerteza, a solução ainda mais conservadora seria a de garantir como D2 cerca de 80% das doses que serão distribuídas daqui em diante para garantir a imunização com segunda dose em Julho, Agosto e Setembro.
Restam 48,7 milhões de doses a distribuir no contrato atual, e há 21,3 milhões de pessoas que precisam de segundas doses
A estratégia de aplicar o máximo possível como primeira dose, como vem sendo feita, só seria possível de ser mantida se deixarmos atrasarem segundas doses propositalmente. E até nesse cenário há um limite, afinal metade das doses da AstraZeneca esperadas para o ano precisam ser segundas doses, ainda que atrase, caso contrário pode haver pessoas que ficam permanentemente sem esse imunizante. Não é da minha especialidade adentrar ao debate científico/imunológico sobre parcialmente imunizar o maior número possível de pessoas versus garantir a imunização completa de quem iniciou o esquema vacinal, mas é importante notar que apesar que para a variante indiana, esse imunizante só é 33% eficaz com apenas uma dose.
Há estudos sobre esse mix de vacinas, e o Canadá adotou essa estratégia de 1a dose AstraZeneca e 2a dose Pfizer ou Moderna. Novamente, não posso adentrar o debate científico/imunológico mas o calendário de entregas da Pfizer permitiria a adoção desse cenário, com a expectativa de 84,5 milhões de doses esperadas para os próximos 3 meses e mais 100 milhões no final do ano.
Não é meu papel ter opinião sobre essas opções, e é possível que existam outras alternativas. Meu papel é analisar os dados e apresentar os fatos. E os fatos são: é improvável que o calendário de entrega de AstraZeneca garanta o quantiativo de D2 sem que tenhamos de reduzir em muito a aplicação de D1. Mas independente da resposta, o debate precisa ser feito agora para que haja uma decisão consciente, e não simplesmente chegarmos nos próximos meses e a falta de doses pegar todos de "surpresa".
É hora de agir. Se a decisão for reduzir o ritmo para garantir segundas doses, isso deveria ser muito bem estruturado com os estados e comunicado para população. Se a decisão for de propositalmente deixar as pessoas sem segunda dose para garantir o maior número de pessoas imunizadas com a primeira, é preicso gerenciar essa expectativa em quem tomou a primeira dose e comunicar isso para a sociedade. Se a decisão for o mix de vacinas, seria necessário desde já iniciar os procedimentos e a comunicação.
Para acontecer esse debate, é preciso fazer barulho. Compartilhe esse texto nas suas redes sociais, marque pessoas que vocês acham poderiam potencializar a mensagem. Amigo jornalista, que tal fazer matéria sobre?